O dia da Baixada: duas estagiárias e um idealista

Corria a virada dos anos noventa para dois mil quando conheci o professor Paulo Manhard, confesso que a primeira impressão foi muito engraçada, no meio das conversas ele tirava uma leve cochilada.
Já tinha estado com ele em anos anteriores por conta do movimento estudantil e do Instituto de Educação Roberto Silveira, que, também, abrigava a faculdade de pedagogia da UERJ na Baixada. Esta história por si só é uma longa história. Porém, estava morando ou frequentando a Vila São Luís quando decidiram transformar um CIEP da Vila na faculdade de Educação da Baixada Fluminense.
Para época foi mais que um reboliço, foi uma conquista e é uma das mais importantes da Baixada. De novo confesso, que apesar de estar tão próximo de tudo que via, ainda era muito envolvido com a UFRJ – que sempre foi uma espécie de casa para mim, literalmente. Fui um alojado e, portanto, carrego os prazeres e desprazeres de ter esta instituição em mim. Foram anos prazerosos de aprendizagem e vida. E não via o quanto a UERJ ocupava, conforme a visão de Darcy Ribeiro, a Baixada, a Região Metropolitana e interior do Rio de Janeiro.



Mas… seguia a primeira turma de pedagogia da FEBF quando, a minha companheira da época, passou no processo de seleção do PIMBA. Fiz parte do primeiro processo de seleção deste núcleo de pesquisa, mesmo não estando ali tão próximo, mas na época ninguém sábia o que seria aquela ideia louca, muito menos o professor Manhard, que sempre muito sensível para a Baixada, percebia ali uma espécie de germe que daria enormes frutos. O Educador tinha ideias e, as vezes, dormia falando delas, mas elas se germinavam por pessoas e lugares.
Digo que participei porque desde o processo de seleção até entrar as primeiras duas estagiárias estava acompanhando de perto e, também, de longe tudo que acontecia. E no linguajar popular, engoli barriga, para o turbilhão que é a Baixada nos dias atuais.
Na verdade, o professor Paulo, ao perceber que era possível aprovar uma linha de pesquisa e extensão, e foi aprovado, começou a selecionar alunos que pertenceriam ao PIMBA. 
As duas que mais se destacaram na época foram a Tatiana Rodrigues e Carla, que não lembro o sobrenome, mas era muito dedicada ao que fazia.
No entanto, as duas não tinham um envolvimento maior com os movimentos da Baixada, a não ser pelo fato de serem da própria baixada – e isso, naquele momento no qual uma ideia nova era tão difícil de ser compreendida, já era muito. E elas colaboraram no processo de seleção e, também, passaram na seleção. Uma vez constituído o PIMBA e realizado todos os processos administrativos e acadêmicos, o que fazer? 
Era uma dúvida para elas e uma espécie de certeza do professor.
Confesso, mais uma vez, que achava que o professor até reconhecia que havia mais possibilidades, mas em sua tranquilidade e espírito amigo, permitiu que as meninas dessem início a algo que seria não apenas novo, incerto, mas fundamental para construção de uma nova história da expressão e educação nas periferias do país.
Tatiana um dia chegou em casa e me agradeceu pelas informações que tinha dado, pois ela fazia parte do PIMBA. E a ideia fundamental era construir uma espécie de grande rede do que havia na Baixada. Falei com certo desconforto que não tinha feito nada, até porque, realmente, havia feito muito pouco em comparação aos amigos e companheiros que já vinham em se posicionado em uma guerrilha pela Baixada.
Eu estava mais para o Rio e com o sonho da possibilidade de um filho de empregada doméstica ser um acadêmico. Belford Roxo, Nova Iguaçu e Caxias era meu mundo real, não via políticos, gestores e muitos movimentos com uma imagem legal. Prefeitos do amor e da morte estavam ligados ao mandonismo local. 
Via, mas não tinha a compreensão do que acontecia naquele momento. Muitos amigos resgatavam e reconstruíam histórias, cantavam músicas e sambas, ensaiavam peças, desejavam fazer filmes e realizavam. 
Parte do que apontei para o primeiro encontro do Dia da Baixada foi feito, mas elas descobriram muito mais.
Foi muito bonito quando as meninas da Baixada falaram das suas descobertas e quantas pessoas estavam com a percepção de que as histórias, culturas, as gentes e seus conflitos e conquistas queriam falar. Havia um cenário de ebulição e muitas mudanças ocorriam.
O balanço do evento foi dividido em dois momentos: o primeiro, com o professor Paulo, que dormiu diante dos relatos das meninas – não porque desprezasse ou quisesse, mas por uma contingência de saúde, – e percebeu que plantou a semente e outro na minha casa.
Lembro quando em meu 486 e na velha lexmark, fizemos o release do Dia da Baixada. As meninas ligando, caçando, procurando e convocando as pessoas para o evento que marcaria uma data especial para reconhecer o que estava sendo feito por aqui.
A ingenuidade delas demonstrava claramente o quanto o professor Paulo não queria situações viciosas e estava acreditando em pessoas que podiam aprender a reconhecer o que éramos naquele momento. 
Elas, por sua vez, se defrontavam com seus conflitos e preconceitos, se viam como moradoras e pessoas da Baixada. E era difícil admitir isso.
É importante falar que a Carla era uma jovem negra, muito bonita, e queria ser modelo e que sonhava sempre em alçar lugares, pessoas, para além do lugar que morava.
Tatiana – por sua vez – tinha uma formação, passionalidade e elegância – se é possível conviver as duas coisas – que estava sempre para além da Baixada e de todos os lugares.
Mas elas conseguiram. Foram atrás das pessoas, ligaram, assumiam que eram estagiárias e não sabiam bem o que queriam, e construíram os elos que o professor Paulo percebia que havia em tudo que era produzido naqueles dias.
Eu, como de praxe, não pude viver todo o momento porque tinha meus alunos e aulas para dar – naquela ocasião – no Rio. E senti profundamente quando elas, em minha casa, comemoram cada pequena conquista em uma UERJ que passava por muitas dificuldades: nde seria impresso os cartazes? Os contatos seriam feitos por qual telefone? Os relatórios, as exigências, as disputas internas de entregas de documentos nos prazos? Quem responderia pelas bolsas e pelos pareceres? Como ficaria a futura eleição da gestão da Unidade de Educação?  
Naquele tempo arquei com pequenos e satisfatórios custos e percebi o quanto, para aquelas duas meninas foi importante ter a certeza daquela realização.
O professor Paulo, naquele momento, amargava preocupações políticas de tudo que era novo e queria ter à certeza que seus companheiros abraçariam a Baixada, como ele.
Havia muitos sonhos, muitas perspectivas que estavam para além da FEBF e que não estavam comprimidas ao cenário da Baixada.
A FEBF não era a consolidação da UERJ em Caxias. A FEBF estava nascendo com um compromisso com o lugar, com o território, com as ideias e tudo que somos nós.
Muitos companheiros de hoje passaram e estão por lá. O sonho do professor Paulo e de muitas pessoas que passaram pelo Roberto Silveira e pela Faculdade de Educação da Baixada Fluminense é vívido e tem transformado vidas.
De fato, o Professor Paulo Manhard merece um reconhecimento como um educador que sonhou em ver a educação se firmar por aqui, por nossos sertões que se levantam com o tempo.